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ABSTRAÇÃO NA BAHIA – PRIMEIRA GERAÇÃO

A PRIMEIRA GERAÇÃO ABSTRATA BAIANA O Abstracionismo é uma forma de expressão não-figurativa e, como corrente artística, começou a se desenvolver no início do século XX, como consequência de uma série de fatores, dentre os quais o advento da fotografia e sua difusão como meio de registro de imagens das paisagens e das pessoas, antes[...]

Mario Cravo Júnior. Construção espacial
1947. Plastelina, 13 cm de altura. Reprodução do livro "Cravo", 1983, não paginado
Mario Cravo Júnior. Aquático
1949. Cobre martelado, 42 cm de altura. Reprodução do livro "Cravo", 1983, não paginado
Mario Cravo Júnior. Oração
1949. Madeira, 2,10 m de altura. Reprodução do livro "Cravo", 1983, não paginado
Mario Cravo Júnior. Composição em espiral
1949. Cobre e latão, 48 cm de altura. Reprodução do livro "Cravo", 1983, não paginado
Mario Cravo Júnior. Anjo
1962. Ferro revestido de latão, 62 cm de altura. Reprodução do livro "Cravo", 1983, não paginado
Mario Cravo Júnior. Construção VII
1958. Pedra sabão, 45 x 15 x 15 cm. Duas imagens da mesma peça. Reprodução do livro "Cravo", 1983, não paginado
Maria Célia Amado. Abstração.
1957, Paris. Técnica mista, 73 x 100 cm. Coleção Odorico Tavares. Foto: Museu Afro Brasil, São Paulo, SP
Maria Célia Amado. Pintura.
1959. Óleo sobre tela, 1,79 x 1,33 cm. Acervo do Museu de Arte Moderna da Bahia, Salvador. Foto: Dilson Midlej
Mario Cravo Júnior. Construção espacial
1947. Plastelina, 13 cm de altura. Reprodução do livro "Cravo", 1983, não paginado
Mario Cravo Júnior. Aquático
1949. Cobre martelado, 42 cm de altura. Reprodução do livro "Cravo", 1983, não paginado
Mario Cravo Júnior. Oração
1949. Madeira, 2,10 m de altura. Reprodução do livro "Cravo", 1983, não paginado
Mario Cravo Júnior. Composição em espiral
1949. Cobre e latão, 48 cm de altura. Reprodução do livro "Cravo", 1983, não paginado
Mario Cravo Júnior. Anjo
1962. Ferro revestido de latão, 62 cm de altura. Reprodução do livro "Cravo", 1983, não paginado
Mario Cravo Júnior. Construção VII
1958. Pedra sabão, 45 x 15 x 15 cm. Duas imagens da mesma peça. Reprodução do livro "Cravo", 1983, não paginado
Maria Célia Amado. Abstração.
1957, Paris. Técnica mista, 73 x 100 cm. Coleção Odorico Tavares. Foto: Museu Afro Brasil, São Paulo, SP
Maria Célia Amado. Pintura.
1959. Óleo sobre tela, 1,79 x 1,33 cm. Acervo do Museu de Arte Moderna da Bahia, Salvador. Foto: Dilson Midlej
Referências
AMADO, Maria Célia. Dossiê sobre a artista. Arquivo do Setor de Museologia do Museu de Arte Moderna da Bahia. Salvador, 2007.

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. 5. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

ARGAN, Giulio Carlo. In: FONTELES, Bené; BARJA, Wagner (Orgs.). Rubem Valentim: artista da luz. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2001. 208 p. Catalogo da exposição realizada de 25 jan a 4 mar. 2001.

COCCHIARALE, Fernando; GEIGER, Anna Bella. Abstracionismo geométrico e informal: a vanguarda brasileira nos anos cinqüenta. Rio de Janeiro: Funarte; Inap, 1987. 310 p. (Temas e debates, 5).

COELHO, Ceres Pisani Santos. Artes plásticas: movimento moderno na Bahia. 1973. 223 f. Tese (Concurso para professor Assistente do Departamento I) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1973.

CRAVO JR., Mario. Cravo. Esculturas de Mario Cravo Júnior e fotografias de Mario Cravo Neto. [S.l.]: Raízes Artes Gráficas, 1983. Não paginado.

______. Mario Cravo Junior: Desenhos. Textos de Napoleão Augustin Lopes, Matilde Matos, Mario Barata et al. Organização de Claudius Portugal. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado: Copene, 1999. 120 p., il. (Coleção Casa de Palavras. Desenhos, 3).

FUSCO, Renato. História da arte contemporânea. Lisboa: Editorial Presença, 1988. 378 p.

FERREIRA, Glória; MELLO, Cecília Cotrim de (Orgs.). Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

GOODING, Mel. Arte abstrata. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. 96 p. (Movimentos da Arte Moderna).

GULLAR, Ferreira. Manifesto neoconcreto. In: ______. Etapas da arte contemporânea: do cubismo à arte neoconcreta. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 283-288.

MIDLEJ, Dilson Rodrigues. A atualidade da criação abstrata de Mario Cravo Júnior. In: MARTINS, Alice Fátima; COSTA, Luis Edegar; MONTEIRO, Rosana Horio (Orgs.). Cultura visual e desafios da pesquisa em artes. Goiânia: ANPAP, 2005. 2 v. p. 149-157.

______. Juarez Paraíso: estruturação, abstração e expressão nos anos 1960. 2008. 200 f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal da Bahia, Salvador.

MORAIS, Frederico. In: FONTELES, Bené; BARJA, Wagner (Orgs.). Rubem Valentim: artista da luz. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2001. p. 53-55. Catálogo da exposição realizada de 25 jan a 4 mar. 2001.

PONTUAL, Roberto. Arte / Brasil 50 anos depois / hoje. Sao Paulo: Collectio, 1973. 402 p.

VALLIER, Dora. A arte abstracta. Lisboa: Edições 70, 1986. 296 p. (Arte & comunicação, 33).

Referência eletrônica:

MIDLEJ, Dilson. Adam Firnekaes e Juarez Paraiso: duas faces da abstração na Bahia. In: Revista Ohun. Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA. Ano 2, no 2, outubro 2005. ISSN: 18075479. p. 85-149. Disponível em: <http://www.revistaohun.ufba.br/revista2.html>.

A PRIMEIRA GERAÇÃO ABSTRATA BAIANA

O Abstracionismo é uma forma de expressão não-figurativa e, como corrente artística, começou a se desenvolver no início do século XX, como consequência de uma série de fatores, dentre os quais o advento da fotografia e sua difusão como meio de registro de imagens das paisagens e das pessoas, antes restritas à pintura. Muitos serviços sociais como retratos, vistas de cidades, ilustrações, entre outros, passaram do pintor para o fotógrafo (ARGAN, 1998, p. 78) e a pintura liberou-se da tradicional tarefa de representar a aparência verdadeira das coisas. Outro fator determinante foi a alteração perceptiva decorrente da crescente planificação e erradicação da profundidade na pintura, promovida pelo Modernismo e que se observou com Édouard Manet (1832-1883) e nas pinceladas dos artistas do Impressionismo, no final do século XIX, sem que houvesse a preocupação de torná-las dissimuladas (FERREIRA; MELLO, 2001, p. 102).

Um outro fator foi o questionamento da ideia de que a pintura e a escultura poderiam retratar a realidade do mundo por meio da imitação (mimese) (GOODING, 2002, p. 6-7). Como consequência, muitos artistas passaram a ver a representação figurativa como uma limitação de suas capacidades de representar as realidades da experiência — incluída a experiência espiritual —, com o tipo de intensidade ou clareza que revelaria sua verdadeira natureza.

A disseminação da abstração na América Latina ocorre inicialmente na Argentina. No Brasil, o surgimento dos primeiros núcleos de artistas abstratos no Rio de Janeiro e em São Paulo, entre 1948 e 1949, provoca reações contrárias de vários setores da produção artística brasileira, dentre os quais estão os artistas remanescentes do Modernismo de 1922, como Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976) e Cândido Portinari (1903-1962). Artistas abstratos estrangeiros já haviam participado de exposições realizadas no Brasil, a partir de 1938, no segundo Salão de maio, em São Paulo, no qual obras abstratas de Ben Nicholson (1894-1982) foram expostas ao lado de trabalhos de artistas modernistas. Na terceira e última edição daquele Salão, realizada no ano seguinte, pôde-se ver trabalhos de Alberto Magnelli (1888-1971), Alexander Calder (1898-1976) e Josef Albers (1888-1976). A presença do casal Arpad Szenes (1897-1985) e Vieira da Silva (1908-1992), de 1940 a 1947, no Rio de Janeiro, foi também relevante no processo de familiarização e de difusão da arte não-objetiva (sinônimo de abstrata) no país (MIDLEJ, 2008, f. 16).

A produção de arte abstrata em Salvador foi uma decorrência das conquistas e dos esforços empreendidos por artistas modernistas da primeira geração. A renovação protagonizada por aquela geração ampliou as possibilidades expressivas do fazer artístico e possibilitou que novas experimentações pudessem acontecer. Ao primeiro grupo modernista sucedeu uma segunda geração que tentou firmar-se no ambiente artístico baiano a partir dos anos 1960 e cujos membros exploraram a linguagem abstrata em suas várias vertentes (MIDLEJ, 2008, f. 16-17).

No Brasil, o reconhecimento do valor da arte abstrata, tanto geométrica quanto informal, deu-se pela atuação da crítica especializada em textos publicados em revistas e jornais de circulação nacional e, mais notadamente, pela ação de instituições como os Museus de Arte de São Paulo, de Arte Moderna de São Paulo e do Rio de Janeiro (fundados em 1947, 1948 e 1949, respectivamente), a Bienal de São Paulo, a partir de 1951, e a Galeria Bonino, no Rio de Janeiro, dentre outras. Encontraram espaço para expor naqueles locais tanto os artistas pertencentes à vertente geométrica quanto a informal. Ferreira Gullar (COCCHIARALE et al., 1987, p. 86) destaca que a Bienal de São Paulo deu grande impulso aos artistas que estavam começando nesse terreno da abstração.

Na Bahia, a fundação, em 1960, do Museu de Arte Moderna da Bahia - MAM-BA foi expressiva para a disseminação da abstração, tendo Lina Bo Bardi (1914-1992) na sua direção até abril de 1964, quando foi substituída por Mario Cravo Júnior. Esta instituição teve uma fabulosa atuação na cidade e já em sua inauguração expunha obras abstrato-informais do cearense Antonio Bandeira (1922-1967). Entre o último ano da década de 1950 e os anos 1960, por intermédio do MAM-BA e de outros espaços na cidade, o público baiano pôde entrar em contato com obras abstratas de criadores como o francês tachista Georges Mathieu (1921), os brasileiros Manabu Mabe (1924-1997), Cícero Dias (1907-2003), Flavio Shiró-Tanaka (1928), o grupo inicial que formava o neoconcretismo com a Exposição de arte neoconcreta, exibida no Belvedere da Sé, em 1959, e os artistas neoconcretos Helio Oiticica (1937-1980) e Lygia Clark (1920-1988), premiados na Primeira Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia, em 1966 (MIDLEJ, 2008, f. 18).

Mario Cravo Júnior, já em 1947, estabeleceu experimentações com a linguagem abstrata, igualando-se aos pioneiros dos primeiros núcleos de artistas abstratos que formavam a vanguarda carioca – Ivan Serpa (1923-1973), Almir Mavignier (1925) e Abraham Palatnik (1928) – e paulista – Waldemar Cordeiro (1925-1973), Luis Sacilotto (1924-2003) e Lothar Charoux (1912-1987). (MIDLEJ, 2005, p. 156).

Dentro do contexto baiano, o repertório formal proporcionado pelo abstracionismo foi utilizado por três artistas dentre os que compuseram a primeira geração de modernistas na Bahia: Genaro de Carvalho, Rubem Valentim e Mario Cravo Junior. Genaro de Carvalho explorou com riqueza o léxico formal do abstracionismo na produção de suas pinturas e tapeçarias. Contudo, suas geometrizações e simplificações formais, obtidas principalmente mediante a estilização da forma, objetivava sempre a representação de um ou mais referentes existentes na natureza, justamente os elementos que comporiam os temas das suas obras: a fauna e flora brasileira, os casarios, as paisagens e os nus femininos, não se configurando, portanto, em criações abstratas.

Já em relação a Rubem Valentim, o desdobramento da sua singular pesquisa de elementos afro-brasileiros resultou numa recriação em signos poéticos e geométricos daqueles elementos, os quais traduzem plasticamente sua visão da ancestralidade africana e da dimensão espiritual. Similarmente ao que acontece em Genaro de Carvalho — que utiliza repertório plástico abstrato mas cujo resultado não se pode considerar como obra abstrata, visto a ligação a referentes reconhecíveis do mundo concreto —, a produção de arte de Rubem Valentim é expressamente associada aos elementos da religiosidade africana, elementos esses que são decompostos e geometrizados, arrancados da “originária semente iconográfica”, sendo que o artista estabelece “difíceis equivalências entre signos e fundo”, segundo opina Giulio Carlo Argan (FONTELES; BARJA, 2001, p. 37). O predomínio da geometrização na obra de Rubem Valentim possibilitou que críticos como Mario Pedrosa, Frederico Morais e Olívio Tavares de Araujo o associassem ao concretismo e à abstração, mas uma análise em que se considere a presença do referente (o que efetivamente ocorre em Rubem Valentim) deixa-nos transparecer que os estudiosos citados parecem referir-se, na realidade, ao uso irrestrito por parte do artista das formas geométricas e não propriamente a uma condição de obra abstrata (MIDLEJ, 2005, p. 151). Roberto Pontual, ao descrever os signos-símbolos visuais utilizados pelo artista que “definem cada divindade ou acontecimento do culto”, pondera que Rubem Valentim aproveita apenas a forma original, sendo esta “reduzida aos elementos de geometria mais simples” e prossegue: “Individualizando-os sobre um espaço neutro e simplificando também seu registro cromático, em chapadas puras, vibrantes, sem meio-tons, Valentim os agrupa então como linguagem abstrata [...]” (PONTUAL, 1973, p. 347). Pontual, então, caracteriza os elementos de composição utilizados por Valentim como aqueles comuns aos de obras abstratas. Ainda no mesmo texto, algumas linhas anteriores às da afirmativa que acabamos de transcrever, Roberto Pontual reforça o aspecto de “figuração” presente na obra de Rubem Valentim:

[...] em Valentim tudo parece concentrar-se no esforço de criar uma realidade pertencente de modo exclusivo a obra, regida por princípios de equilíbrio, simplicidade e simetria geométrica. De qualquer maneira, e contra as aparências, ainda aqui se trata de figuração, tentativa de refundir o mundo prévio das coisas exteriores ao quadro. (PONTUAL, 1973, p. 347)

 

Finalmente, Pontual (1973, p. 347) conclui que há “uma evidencia semântica em cada trabalho de Rubem Valentim”, evidencia semântica esta já apontada anteriormente, em 1966, por Giulio Carlo Argan (FONTELES; BARJA, 2001, p. 37), quando escreveu que a pintura de Valentim “quer demonstrar e que nas atuais concepções do espaço e do tempo os símbolos e os signos de uma experiência antiga, ancestral, conservam uma carga semântica não inferior a geometria pitagórica ou euclidiana”. Essa carga semântica dos signos das obras remete aos elementos afro-brasileiros, portanto, objetos constituintes e reconhecíveis da realidade. Renato De Fusco (1988, p. 116), ao explanar sobre o cubismo, proporciona uma esclarecedora descrição do que vem a ser uma obra abstrata, destacando a importância do traço a-semântico como característica da obra abstrata:

Se os cubistas tivessem reduzido totalmente as imagens às unidades fundamentais da linguagem e, através desses traços a-semânticos, tivessem depois construído singos [sic] desligados de qualquer referente, mas servindo para reeestruturar [sic] novas imagens, teriam sem duvida desembocado na pintura abstracta. Pelo contrário, nunca chegaram a esse ponto precisamente porque [...] nunca quiseram abandonar a ligação a um referente externo, a figura, a paisagem, a natureza morta [...]. (DE FUSCO, 1988, p. 116).

 

Parece-nos que essa explicação elucida a inadequação em considerarmos Valentim um artista abstrato, visto sua obra ser constituída de signos ligados aos referentes afro-brasileiros, dentre os mais de uma centena identificados em 1969 por Frederico Morais (FONTELES; BARJA, 2001, p. 55), os quais são “representações estilizadas do homem, da mulher (e do sexo), da casa, do pássaro (movimento, voo), da água (barcos), da terra e da vegetação, da religião (cruz, templos)”. Já em relação à pertinência dele ao grupo concretista, podemos identificar na geometrização frequente e constante, nas cores chapadas utilizadas, na organização espacial e na economia de recursos plásticos, elementos inegáveis do repertório formal do concretismo, mas a utilização livre de cores e o aspecto místico-religioso imbuído nos signos desse artista, distanciam-no da poética concreta (MIDLEJ, 2005, p. 153). Ou Rubem Valentim seria um caso particular de produção artística que não se vincularia às rotulações conceituais da abstração e da corrente concreta ou estaria mais para uma versão pessoal e particularizada da postura defendida pelos neoconcretos, mais sensível e flexível ao uso da cor e que “repõe o problema da expressão” (GULLAR, 1999, p. 285) na produção artística (MIDLEJ, 2005, p. 153). De qualquer forma, a inadequação a classificação de Rubem Valentim como artista abstrato não diminui sua importância dentro do contexto artístico brasileiro, principalmente pela reafirmação da identidade brasileira presente em suas obras através da rica herança africana.

Uma análise panorâmica das principais obras de Mario Cravo Júnior, a partir de 1943, revela-nos que a produção abstrata desse artista remonta a 1947 com Construção espacial, escultura em plastelina (tipo de massa de modelar) e estender-se-á durante toda sua produção até os dias recentes. Em 1949 produz Aquático, em cobre martelado; apesar do título, as formas desse trabalho são totalmente abstratas. Naquele mesmo ano produz Oração e Composição em espiral. Outro exemplo, este da década de 1950, é Construção VII, de 1958. Até meados da década de 1960 o artista alterna obras figurativas com abstratas, tais como Anjo, de 1962. Já a partir da segunda metade daquela década, o predomínio da sua produção é eminentemente abstrato (MIDLEJ, 2005, p. 91).

A utilização da linguagem abstrata por Mario Cravo Junior é emblemática por ser ele personalidade de extrema importância na renovação da arte baiana na segunda metade da década de 1940. Para atingir essa posição ele, além do seu talento, precisou atingir pleno domínio dos recursos de todos os materiais de que um escultor pode dispor (barro, madeira, pedra, metais e plásticos), como também se valeu de conhecimentos oriundos de viagens ao exterior, fatores esses que se juntaram ao espírito renovador que caracterizava o sentimento dele e de outros artistas, à época. A utilização da linguagem abstrata por esse esteta não só demonstrava sua ousadia estilística em um ambiente ainda marcadamente academicista e conservador que era Salvador na década de 1950, como também proporcionava maior liberdade expressiva e recursos aparentemente sem limites, algo que a figuração não oferecia.

O próprio artista, contudo, em entrevista concedida a Clarice Lispector e publicada na revista Manchete, de 21 de junho de 1969, rechaça a classificação de produção abstrata, pois considera que suas formas originam-se no mundo orgânico. Ao ser perguntado se teria passado definitivamente da arte figurativa para a abstrata, responde:

 

Eu sou um escultor figurativista, mesmo quando faço coisas não figurativas. As minhas formas mais puras, mais despojadas, tem relação com o mundo orgânico. São núcleos, formas germinantes, óvulos ou ovulação, crescimento, etc., todos eles termos esencialmente [sic] figurativos, embora não apresentados por forma humana ou animal. (CRAVO JR., 1999, p. 88).

 

Roberto Pontual, reconhecendo na obra de Mario Cravo Júnior “analogias com o mundo orgânico ou natural”, associa-o a Barbara Hepworth e a Henry Moore ao afirmar que, embora a simplificação formal “pareça tê-lo transferido para o âmbito de pesquisas abstratas puras, ainda aqui subsiste, como num paralelo com Barbara Hepworth e Henry Moore, um diálogo de analogias com o mundo orgânico ou natural” (PONTUAL, 1973, p. 291).

Uma análise mais detida da produção de Mario Cravo Júnior vai confirmar a existência de trabalhos — como os já citados — sem referentes ao mundo real. Portanto, seguramente, obras abstratas, independentemente da presença de formas orgânicas. As formas orgânicas utilizadas não inviabilizam a classificação das esculturas como obras abstratas, visto o exemplo de artistas como Jean (ou Hans) Arp, com suas esculturas posteriores a 1930, como a série denominada Concreções. São formas que procuram rivalizar com a natureza, mas, como característica própria do artista, traduzem uma sensualidade própria, fruto da organicidade da forma. Ainda que Arp adote uma posição ambígua em relação à abstração (ele queria que o considerassem um escultor concreto), sua produção a partir da série Concreções é classificada por estudiosos como Dora Vallier como abstrata. Esta autora, ainda referindo-se a Arp, comenta: “De facto, a sensualidade com que trata a matéria surge como a melhor arma contra a frieza geométrica [...].” (VALLIER, 1986, p. 184). A organicidade, portanto, assim como as características de sensualidade, leveza e tantas outras comunicadas pela forma da arte escultórica, presente também na obra de Mario Cravo Júnior, não é elemento que impeça o expressivo número de peças de sua autoria ser qualificado como abstratas, assim como também não impediram as formas convexas e côncavas da escultora inglesa Barbara Hepworth de serem abstratas. Uma abstração mais humana (VALLIER, 1986, p. 187), mas ainda abstração. Outro exemplo é o também escultor inglês Henry Moore, de igual maneira abstrato num dado momento da sua evolução, por volta de 1930, quando pertencia ao grupo Abstração-criação (VALLIER, 1986, p. 187).

No que toca à participação de artistas baianos no processo transformador modernista e que desenvolveu obras abstratas sobressaiu-se Maria Célia Amado (Maria Célia Amado Calmon Du Pin e Almeida, 1921-1988). Ela teve uma participação mais vinculada à Escola de Belas Artes — local, inclusive, de sua formação educacional — e uma destacada atuação na introdução das ideias modernistas naquela comunidade. O fato de não ter um currículo tão expressivo quanto o de seu colega Mario Cravo Júnior, nem a reputação que este já gozava, terminou por deixar passar despercebida sua contribuição ao desenvolvimento da arte moderna e, de igual maneira, da produção abstrata na Bahia. Uma ilustração disso é que ela teria, segundo Ceres Coelho (1973, f. 17), aderido ao movimento modernista após o retorno de Mario Cravo Júnior dos Estados Unidos, em 1959. Entende-se, todavia, que isto não condiz com a produção artística desenvolvida pela artista. O enfoque modernista em suas obras, e mesmo a adesão à linguagem abstracionista, deu-se muito antes de 1959, ou seja, antes de Mario Cravo Júnior retornar dos EUA, como comprova a pintura abstrata datada de 1957, anterior, portanto, à alegada adesão dela ao grupo liderado pelo escultor baiano. Esta pintura foi executada na França, onde a artista esteve entre 1956 e 1957, com uma bolsa de estudos fornecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes (AMADO, 2007).

Admite-se que também reforçam a presença modernista em sua obra — agora se observando sua produção figurativa — os desenhos que ilustram a tese de 1955 para o concurso à cátedra de Desenho de Croquis, os quais já refletiam características modernas de simplificação formal, de valorização de temas coloquiais e ênfase na expressão. A produção daquela pintura abstrata coloca-a, ao lado de Mario Cravo Júnior, como introdutora da abstração na Bahia, cabendo a Mario Cravo Júnior, como já assinalado, a primazia de ser o primeiro artista baiano a desenvolver essa linguagem, sendo estes dois os mais relevantes entre os artistas da primeira geração modernista que trabalharam com abstração.

 

 

 

 

Referências
AMADO, Maria Célia. Dossiê sobre a artista. Arquivo do Setor de Museologia do Museu de Arte Moderna da Bahia. Salvador, 2007.

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. 5. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

ARGAN, Giulio Carlo. In: FONTELES, Bené; BARJA, Wagner (Orgs.). Rubem Valentim: artista da luz. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2001. 208 p. Catalogo da exposição realizada de 25 jan a 4 mar. 2001.

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MIDLEJ, Dilson Rodrigues. A atualidade da criação abstrata de Mario Cravo Júnior. In: MARTINS, Alice Fátima; COSTA, Luis Edegar; MONTEIRO, Rosana Horio (Orgs.). Cultura visual e desafios da pesquisa em artes. Goiânia: ANPAP, 2005. 2 v. p. 149-157.

______. Juarez Paraíso: estruturação, abstração e expressão nos anos 1960. 2008. 200 f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal da Bahia, Salvador.

MORAIS, Frederico. In: FONTELES, Bené; BARJA, Wagner (Orgs.). Rubem Valentim: artista da luz. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2001. p. 53-55. Catálogo da exposição realizada de 25 jan a 4 mar. 2001.

PONTUAL, Roberto. Arte / Brasil 50 anos depois / hoje. Sao Paulo: Collectio, 1973. 402 p.

VALLIER, Dora. A arte abstracta. Lisboa: Edições 70, 1986. 296 p. (Arte & comunicação, 33).

Referência eletrônica:

MIDLEJ, Dilson. Adam Firnekaes e Juarez Paraiso: duas faces da abstração na Bahia. In: Revista Ohun. Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA. Ano 2, no 2, outubro 2005. ISSN: 18075479. p. 85-149. Disponível em: <http://www.revistaohun.ufba.br/revista2.html>.
Autoria

Autores(as) do verbete:

Dilson Midlej

Data de inclusão:

09/01/2014

D536

Dicionário Manuel Querino de arte na Bahia / Org. Luiz Alberto Ribeiro Freire, Maria Hermínia Oliveira Hernandez. – Salvador: EBA-UFBA, CAHL-UFRB, 2014.

Acesso através de http: www.dicionario.belasartes.ufba.br
ISBN 978-85-8292-018-3

1. Artes – dicionário. 2. Manuel Querino. I. Freire, Luiz Alberto Ribeiro. II. Hernandez, Maria Hermínia Olivera. III. Universidade Federal da Bahia. III. Título

CDU 7.046.3(038)

 

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