CAPÍTULO I – O PANO DA COSTA 1.1. — ORIGENS E SIGNIFICADO Tecido em tear manual por escravos ou descendentes de escravizados, o Pano da Costa tem significado religioso e social. Analisado sob o ângulo social é um sinal que permite identificar a função, posição hierárquica e poder da sua portadora na comunidade[...]
Tecido em tear manual por escravos ou descendentes de escravizados, o Pano da Costa tem significado religioso e social.
Analisado sob o ângulo social é um sinal que permite identificar a função, posição hierárquica e poder da sua portadora na comunidade religiosa afro-brasileira, e não apenas um complemento da indumentária da negra típica.
Sob o ângulo religioso observamos um sentido de respeito, humildade, diante do Orixá e também um significado mágico — proteção — às suas portadoras.
O Pano da Costa é uma peça que deve estar sempre presente na vestimenta da “negra baiana”. Seja ela quituteira, Yaô, Ialorixá ou Veterana.
É uma peça característica, indispensável, como são também os argolões, os colares de contas, o Kelê e o torso. Um traje completo, além desses distintivos consta ainda de bata rendada, balangandãs, correntão de ouro, sandália de salto alto e a saia rodada.
O pano da Costa, nos conta seu Abdias, pode ser usado das seguintes formas.
— “amarrado enrodilhado, na cintura;
— Amarrado no busto, todo aberto nas costas, sobre saias bem rodadas;
— Caído sobre os ombros;
— Em torno do pescoço, sobre os ombros, cruzando na frente, em forma de um “X”.
Pela maneira de portar o pano da costa, o torso, colar de contas, o Kelê e o Idê, podemos identificar a “identidade’ da usuária, sua função e posição hierárquica na comunidade.
Sobre as origens do pano da costa, o depoimento do último da linhagem dos seus fabricantes:
”O pano da costa foi introduzido no Brasil pelos africanos; primeiramente importado, depois tecido aqui mesmo, desde a época da escravidão. Quem fazia era o escravo ou descendente de escravo. Não acredito que o homem branco fizesse, sobretudo porque o africano não ensinava mesmo! O nome africano é Alaká, pano de Alaká; pano-da-costa porque eram usados nas costas ou talvez ainda, porque viessem das Costas da África; pano de cuia porque os panos eram colocados em cuias de cabaça ou gamelas e que as africanas saíam pelas ruas mercando – pano de cuia!”
Sobre a sobrevivência do pano-de-costa, o velho tecelão esclarece:
“O original pano da costa, o verdadeiro; é o que é tecido em tear manual, que é o que eu faço. Esse é o pano de Alaká.
Há também o “pano branco”, que antigamente era de madrastro, que elas compravam a fazenda nas lojas e cortavam, depois bordavam todo, com bordados bonitos e embainhavam. Pano de Oxalá. Agora qualquer um tipo de pano branco é usado.
Há também um outro tipo de pano da costa, que elas dizem ser pano da costa. É um de listra colorida, pano de porta de loja, que elas cortam e embainham”.
“Hoje devido as dificuldades de encontrar quem faça e também o alto custo de um verdadeiro pano da costa é que elas vão comprar nas lojas.
A dificuldade das baianas não se trajarem à rigor é porque tudo é caríssimo e elas não têm condições.
Pelo gosto, como queria o antigo prefeito HÉLIO MACHADO, todas elas andariam vestidas a caráter, nos moldes típicos. Mas hoje, minha senhora, como é que pode!”.
Tecido em tear manual, o pano da costa não é uma peça inteiriça. É tecido em tiras de dois metros de comprimento cada uma, variando a largura entre 10 e 15 cm. Estas tiras são depois unidas uma a uma e batidas com o batedor.
Falando sobre o processo de tecidura do pano da costa, explica o artesão:
“Um pano da costa leva de oito a dez tiras. Nem mais nem menos.”Os materiais usados na tecelagem do pano da costa são:
A) Os fios — podem ser de fibras vegetais, de algodão, ou ainda de seda.
As linhas, de algodão ou seda, colorida são de diversos tipos – de carretel, de bolo, ou de meada, ou ainda de novelo, nunca usou linha de retrós. Essas linhas são adquiridas avulso ou em caixas, nos armarinhos.
B) O tear – praticamente todo em madeira. Apenas o pente (madeira e metal), a corda que segura o liço e o freio do rodo (ferro) são de outro material. Corno se vê, é uma peça artesanal, exemplar sobrevivente do período pré-industrial. O primeiro tear usado pelo velho herdeiro das raízes do Keto é bem antigo. Seguramente tem mais de cem anos. Hoje esse tear faz parte do acervo do Museu do Instituto Feminino da Bahia.
É o velho tecelão quem explica algumas peças do tear:
”O rodo – pau onde fica enrolado a tira já tecida, um pouco mais grosso que um cabo de vassoura. Tem mais ou menos um metro de comprimento. O rodo fica preso a um par de braçadeiras – uma de cada lado;
O pente – serve para acochar os fios. Fica pendurado no centro do tear. seguro por um pedacinho de corda de cada lado do tear. Em cada vão do pente são enfiados de três a quatro fios;
O liço – è empregado para o trançado. Tanto o líço como o pente ficam dependurados. O pente fica na frente e o liço atrás. No liço é enfiado fio por fio. Um embaixo o outro em cima, devido ao movimento dos pedais para fazer o trançado.
O pedal – fica preso à coluna do meio do tear (um de cada lado) o pedal fica preso no liço. O liço funciona coordenado com os pés. O pente trabalha solto;
O peso – Caixa de madeira maciça cheia de areia e brita, fica proporcional à extensão dos fios. É para manter o fio esticado, quando estiver trabalhando;
Canela – também de madeira, em forma de uma canoa – canela ou lançadeira como é chamada – é para botar a taboca dentro dela;
Traquête – pequena peça, fundamental, que fica preso ao liço e ao Pedal. Sem o traquête o liço não funciona. É a alma do negócio.” Continua o velho mestre na sua explicação sobre corno fazer o pano da costa:
”Primeiro a gente estende os fios. Tem-se que fazer um total de 140 ou mais fios para tecer um pano de dois metros. O zig-zag é um complicado processo de estender os fios. Depois de estendidos os fios, é colocado no pente. Do pente enfia-se no liço e (em seguida) estica-se os fios prendendo o peso. Depois enrola-se a linha na taboca com fuso, e, depois de enrolado o fio na taboca, bota-se esta na canela.
Começa-se então a tecer, jogando com a canela e pedalando. É uma arte que exige muita paciência e perseverança essa do pano da costa. Não é para qualquer um não.” A tecelagem do pano da costa é demorada, levando de dois a três meses para aprontar um único pano. O processo original, aprendido com o padrinho, é rigorosamente seguido por mestre ABDIAS.
Os panos dos Orixás são tecidos obedecendo os preceitos do ritual afro. Se liso ou em listras ou ainda em quadros. As cores são diferentes no pano de cada Orixá.
Sobre isso nos fala ABDIAS.
“Os panos da costa são tecidos nas cores de cada um. Se eu fizer um pano vermelho e branco, de quadro ou de listra, ele tanto serve para Xangô quanto para Yansã. Azul e branco é para Oxosse. Vermelho e Amarelo é Ogun. Todo alvo é Oxalá. Azul e Amarelo é Oxum. Lilás é Yemanjá. As cores do arco-íris é Oxumarê. Sulferino (roxo) é Nanã e Omulu.”
O tempo de tecidura de um único pano da costa leva de dois a três meses para ser concluído.
Falando ainda sobre os materiais do pano da Costa, observa o velho artesão:
“O pano da costa pode ser de algodão, de palha-da-costa, e de seda.
Na minha opinião, me parece, o mais africano de todos é o de algodão. O pano de palha-da-costa não é muito usado no Brasil porque há dificuldade de se encontrar a matéria prima (a palha da costa). Eu também podia fazer um pano da costa de fibras de tucum, mas dá muito trabalho, por isso eu não faço.”
ABDIAS DO SACRAMENTO NOBRE, o mestre Abdias como é mais conhecido, nasceu em 19 de novembro de 1910, na Ladeira do Aquidabã, freguesia de Santo Antonio, Salvador, Bahia.
Seu pai, DIONÍSIO ANDRÔMIO NOBRE, era ferreiro e carreiro e sua mãe Dona AMÉLIA DO SACRAMENTO NOBRE, doméstica.
“Meu pai tinha uma grande tenda onde é hoje o mercado das Sete Portas. Fazia rodas de carroça, rodas, bucha, galeota. Era muito conhecido no seu ramo. Dr. Pires, Frederico Costa, família de Chico Martins, eram alguns de seus fregueses. Não cheguei a conhecê-lo porque ele faleceu no ano que eu nasci.”
Falando da sua vida, seu ABDIAS relembra passagens importantes desde pequenino.
“Quando nasci, com menos de 1 ano de idade, minha mãe me colocou na Roda — Pupileira da Santa Casa de Misericórdia — porque não tinha ninguém que olhasse por mim. Como ela era viúva pobre, precisando se manter, me deixou lá até a idade de 9 anos. Quando saí da Roda, fui morar na Quinta das Beatas, lá pros lados de Brotas, no Alto Formoso e hoje é Cosme de Farias. Ai mesmo, na Quinta das Beatas, aprendi oficio de alfaiate com mestre Vitorino. Foi minha mãe que escolheu essa profissão, porque era mais leve. Ela dizia que eu era muito franzino. Mas, não continuei, sai por conta própria, não tinha paciência de ficar tanto tempo sentado. Nessas alturas, já com a idade de 12 anos fiquei perambulando, fazendo biscate. Trabalhei de jardineiro no Colégio HUGO BALTAZAR DA SIlVEIRA. Daí, por sugestão de um senhor chamado CAETANO — estivador – fui trabalhar numa casa de família – na casa do professor CINCINATO FRANCO. A esposa chamava-se CORA FRANCO. Tinham dois filhos LUCILA FRANCO — (Professora de piano) — e ARARI FRANCO. Lá eu levava e recebia encomendas para a dona da casa que era modista. Fiquei aí até mais ou menos 13 anos. Quando saí fui passar uns tempos na casa do meu irmão mais velho PEDRO. Mas não fiquei muito tempo, fui logo embora, porque não dava certo e mesmo porque ele, o PEDRO, se empregou de embarcadiço. Foi embora pelo mundo e nunca mais vi, até hoje. Da casa de PEDRO, fui pra casa de meu padrinho ALEXANDRE GERARDES DA CONCEIÇÃO ficando lá até a idade de 30 anos mais ou menos. Foi quando aprendi a tecer o pano da costa com meu padrinho.”
— Por que a mãe do Senhor escolheu ele para padrinho?
“Isso aí, foi porque o meu pai era muito amigo dele e meu padrinho era muito amigo de meu pai. Então por causa dessa camaradagem minha mãe escolheu ele para me batizar.”
— Não foi porque ele tinha vida melhor, porque era mais importante
Não?
“Eu também não sei se foi por causa disso.”
- Fale sobre o velho ALEXANDRE
“O velho ALEXANDRE era escuro, tirado a cabo verde, cheinho de corpo, mais baixo do que eu, na altura de 1,70m, mais ou menos. Eu devo ter 1,80m. Eu sou alto. Era muito simpático.
O meu padrinho trabalhava em várias coisas. Era carteiro, barbeiro, sabia empalhar cadeiras. Fazia tecelagem de pano da Costa, fazia capacete tanto de metal como de palha para os orixás. Estudou até o 4º ano de medicina. Penso que provinha de Tapa, na Africa.
“Na memória do afilhado, um engrandecimento do mestre
”O velho ALEXANDRE era descendente de africanos, era principe, segundo testemunho de uma parenta, e também era parenta de ENOCH CARTIADO (médico). Era príncipe da nação Obá. Era neto de africano. Seu avõ era chefe da tribo Obá. Era filho de dona EMILIA BONIFÁCIO DA CONCEIÇÃO e de seu EZEQU1EL. Teve dois filhos: LADISLAU e SEMIRAMIS. Nenhum deles seguiu o pai na arte do pano da Costa. Dos irmãos, o que o acompanhou na arte foi GREGORIO GERARDES DA CONCEIÇÃO, sendo que não permaneceu por muito tempo devido a Problemas de saúde. GREGORIO aprendeu com meu padrinho já homem feito. Sua profissão realmente era pedreiro.
Este GREGÓRIO também era artesão carpinteiro –fazia instrumentos musicais de corda (cavaquinho, rabeca, violino, bandolim, etc). Tocava violino e castanhola compunha músicas. Em vida, foi muito amigo de ANFILÓFIO, professor de violino e muito conhecido na época. Todos os anos GREGORIO saia no Terno do Arigofi. O terno mais famoso aqui da Bahia, composto somente de instrumentos de corda e acompanhado de castanholas. Quando GREGÓRIO morreu do coração, ele estava fazendo um piano toda à mão.
O velho ALEXANDRE aprendeu o Pano da Costa com o pai dele – seu EZEQUIEL. Tem trabalhos expostos no Terreiro de Tia Maci. Terreiro Casa Branca no Engenho Velho; Terreiro de Gantois (tempo da finada Pulqueria); Terreiro de Antônio Oxumaré (na Vasco da Gama); Terreiro GÈGE de Seu Procópio.
Seu EZEQUIEL fazia panos para os terreiros da Bahia e passou para seu filho ALEXANDRE sua Arte. Morreu com aproximadamente 70 anos, em Salvador não sei o ano. Junto com ALEXANDRE havia outros babalaôs, tecedores do pano da Costa.
“O seu padrinho era ligado a algum Terreiro de Candomblé?
”Não, ele compreendia muito essas cosas de Candomblé, mas não usava nem a avó dele queria que ele se metesse nisso, porque era muito arriscado, muito forte, muito quente!”
O Senhor conheceu a avó dele?
“Não. Só conheci a mãe dele e os irmãos. Não conheci nem o pai nem a avó. Eu só ouvia falar neles.
A avó dele tinha “PEJI” Talvez fosse mãe de Santo ou filha de Santo. Por isso ela não queria que o neto se metesse nisso. A avó de meu padrinho era uma negra rica que possuía até escravos e, que perdeu toda a sua fortuna para desfazer-se de um feitiço contra a mãe do meu padrinho. Por isso ele não completou seus estudos de medicina.
D. EMILIA era chamada de “GUNUGUI” porque foi Bonocô quem fez seu parto.
“Foi ouvindo os conselhos de dona EMILIA BONIFÁCIA DA CONCEIÇÃO, mãe do velho ALEXANDRE, que seu ABDIAS aprendeu a tecer o pano da Costa:
— Aprenda essa arte porque meu filho ganhou muito dinheiro com ela. É uma arte que está desaparecendo no Brasil. Os que sabem ou voltaram para a África ou estão morrendo.
“Os primeiros panos da costa feitos por mim, estão hoje expostos no Museu Nacional do Rio de Janeiro, com o nome do meu padrinho, mas fui eu quem fez.
São ao todo uns dez panos em linha de seda. Cada pano é de um Orixá. Ele saía para entregar correspondência. Ele era carteiro. E eu ficava em casa, fazendo a tecelagem dos panos de Alaká.”
“Quando eu ainda estava com meu padrinho, trabalhei avulso: Trabalhei nas Docas como portuário (doqueiro); um trabalho penoso. Não é o mesmo que estivador. Estivador é quem trabalha nos porões dos navios, é marítimo. É um trabalho dividido o do dogueiro e o da estiva, embora sejam do mesmo ramo. O doqueiro pega a carga da beira do cais e leva para o armazém e traz do armazém e bota na beira do cais. O estivador pega a carga do porão do navio e bota na beira do cais. O estivador pega a carga do porão do navio e bota na beira do cais para o porão do navio. Compreendeu a diferença?
O estivador é marítimo, o doqueiro não. Minha mãe dizia que antigamente se chamava “Os homens do campo” no lugar de estivador, mas depois desapareceu aquele nome com o progresso; foi mais do tempo dela. Para trabalhar nas Docas tirei carteira de marítimo na Marinha Mercante, como carvoeiro e depois como cozinheiro ajudante. Essa segunda carteira eu tirei para ver se apressava o meu embarque, mas não adiantou nada. Gastei muito dinheiro. Tenho diploma e distintivo de marítimo e também as duas carteiras. Esses documentos estão guardados comigo até hoje. Não cheguei a trabalhar de embarcadiço. Fiquei esperando uns seis anos para ser chamado. Enquanto estava esperando, não podia ficar parado pois tinha que ganhar a vida; não tinha quem me desse, fui trabalhando no que aparecesse, não escolhia trabalho. Metia os peitos mesmo!
Não fiquei muito tempo nas Docas. Durou mais ou menos uns dois meses por aí. Trabalhava pela manhã e a tarde. Ganhava sete mil reis por dia. Ganhava pelo que trabalhava. Mas eu gostava desse trabalho porque desenvolvia o físico. Eu era magrinho e trabalhando assim com peso, fazia física e desenvolvia o corpo.
Das Docas foi que eu parti para Mapele, na construção de uma ponte em Mapele. Depois de Mapele fui para Santo Amaro de Ipitanga (atual Lauro de Freitas) e depois de Santo Amaro é que fui para Ponta de Areia. O meu trabalho era trabalho de traço. Sabe o que é trabalho de traço? É fazer massa. Quer dizer, os mestres de obras diziam assim: — Vá fazer traço — quer dizer, vá fazer massa. O meu trabalho em Ponta de Areia e Santo Amaro de Ipitanga são da época da guerra nazista. Foi para a construção dos barracões. Era diarista nesse trabalho, ganhava por hora de trabalho. Depois que saí do ramo da construção civil fui para a TEXACO. Na Texaco fiquei como trabalhador braçal. Lá na Texaco éramos treinados para emergência de incêndio; o pessoal da estiva não estava apto para o serviço. Nós éramos treinados sempre. O apito era o sinal de alarme. Usávamos roupa especial, utilizando pá, areia e extintor. Nada de água. O serviço era pesado, muito pesado mesmo! Carreguei muito peso. Tonéis cheios, pesados, caixaria também. Muitos colegas morreram do coração e eu perdi minha saúde. Eu fiquei doente e me encostei 5 anos. Depois me aposentei. Quando fui ao médico; o nosso médico de lá da Companhia Texaco, naquela época, era o Dr. EDGAR PIRES DA VEIGA, era o médico da gente. Então, quando ele me examinou ele disse – é, ABDIAS, você está com horta no coração – (provavelmente dilatação na aorta). Até os companheiros brincavam comigo dizendo — ah! não vou comprar verdura não, porque tenho um companheiro que tem uma horta no coração! Então o doutor me disse – o senhor fica em casa uns 5 dias, se não melhorar, encosta-se na caixa durante uns 15 dias. Naquela época era Caixa, ainda não tinha INPS. Não foi assim que passou dos 15 dias e terminei ficando na Caixa uns 5 anos. Nunca mais voltei ao serviço. Sentia dores do lado esquerdo, ficava com o coração batendo rápido, doía um pouco, dorzinha leve. Não podia tomar susto. Mas, “quando Deus quer, água fria é remédio”. Fiquei encostado esse tempo todo, uns 5 anos. Só fui me aposentar de Castelo Branco (presidente do Brasil) para cá.
Trabalhei 23 anos. Fiquei lá até a queda de JANGO GOULART. Na Texaco eu ficava isolado. Não gostava de conversa, não me misturava com o pessoal, era muita zoada. Não é porque eu gostava de me destacar nem desfazer dos outros, mas porque era minha natureza mesmo. Sempre fui assim e até hoje sou assim.
“Quando eu estava na Texaco eu quase não fazia Pano da Costa”.
Foi enquanto estava na Texaco que morre o padrinho Alexandre e Abdias e herda o tear.
Foi no tear do “Seu EZEQUIEL” que depois passou para as mãos de seu filho, ALEXANDRE GERARDES DA CONCEIÇÃO — O velho ALEXANDRE — que seu ABDIAS aprendeu as primeiras lições de tecelagem do pano da costa ajudado pelo padrinho. Neste mesmo tear, mais tarde, ele continuou seu trabalho durante anos. Com a morte do padrinho ALEXANDRE, ele recebe da filha deste — Semírames — o tear como herança. E seu ABDIAS assim nos conta como recebeu o velho tear:
”Veio parar nas minhas mãos depois da morte do velho ALEXANDRE porque, em vida, antes dele morrer, eu ouvia ele falar que ia botar o tear no Instituto Histórico, mas acontece que eu aprendi a arte de tecelagem do pano da costa. Por esse motivo, porque eu já tinha aprendido a fazer o pano da costa, ele não botou mais o tear no Instituto Histórico e o tear ficou no meu poder. Foi a filha dele, Semirames, quem me aconselhou — você vai ficar com o tear, logo o tear é seu — Isto foi depois da morte do meu padrinho. O tear estava então na casa dele, na Avenida Oceânica. Eu peguei esse tear e fui para o atelier de MÁRIO CRAVO (JÚNIOR). Nessa época ele morava na Vila Matos — na Garibaldi. Nessa época ainda tinha bonde; o bonde passava por ali, no meio da roça. Chamava-se Garibaldi e conserva esse nome até hoje. Fui para casa de MÁRIO CRAVO porque eu não tinha condições. Não tenho bem lembrança de como fui parar lá. Fiquei trabalhando lá na casa de MÁRIO CRAVO. Mas lá era pequeno. Um dia ele me disse — é ABDIAS, aqui é pequeno, vou arranjar um outro lugar para botar o tear —. Daí da Vila Matos, casa de MARIO CRAVO, foi para o Bosque da Barra, uma casa vazia, onde é hoje o Instituto Mauá (o Instituto foi extinto no Governo de Rui Costa, o edifício fica no Porto da Barra, onde é mantida uma loja de artesanato). Fiquei trabalhando uns tempos. Tinha um rapaz que tomava conta por causa dos banhistas. O nome dele era REGINALDO, acho eu. Mas, acontece que, quando eu chegava lá encontrava as coisas diferentes do que eu tinha deixado: as cores bulidas, os fios cortados, essas coisas todas. O rapaz não tomava conta direito. Dai que ele, MÁRIO CRAVO, arranjou um outro lugar. Sai dessa casa do Porto da Barra e fui para o Instituto Feminino, onde estou até hoje. Foi MÁRIO CRAVO que me aconselhou a trabalhar no Instituto Feminino. Foi ele que me apresentou a Dona Henriqueta Catharino. Tenho pra mim que ela ficou entusiasmada, porque o Pano da Costa já era talvez do conhecimento dela, porque a raça africana já devia ter alguma ligação com a família dela, pois era descendentes de portugueses. Foi assim que doei o tear para o Instituto Feminino. Tem lá o papel escrito por mim, da doação. Mas continuo trabalhando nele, todos os dias, até o dia que DEUS quiser. Este tear é autêntico tear africano.
Durante a época da Texaco, duas vezes eu fui chamado para dar demonstração do Pano da Costa no Instituto Feminino, convidado por dona HENRIQUETA CATHARINO. Na época era prefeito HÉLIO FERREIRA MACHADO (1954/58). Esse cidadão queria me ver, se interessou pela arte do Pano da Costa e enviou representante para a primeira demonstração. Uma outra vez foi quando dona HELOISA TORRES estava aqui na Bahia. O velho ALEXANDRE já tinha morrido há uns cinco anos. Ela não sabia.
Depois, fiquei parado no tear. Ainda levou algum tempo para eu voltar a trabalhar no pano da costa.”
“Depois que me aposentei da Texaco, vendo que a minha aposentadoria não dava para a minha sobrevivência, fiz o seguinte — resolvi vender jornal na rua. Quando vi que o jornal também não dava, fui vender picolé na rua. Arranjava também trabalho em obras de construção civil. Tudo isso porque eu não podia ficar parado de jeito nenhum, porque tinha família, tinha que trabalhar.
Eu recomecei o trabalho no tear depois que me aposentei da Texaco. Fiquei trabalhando no Instituto Feminino; vendia panos à dona HENRIQUETA CATHARINO mesmo, e lá estou até hoje, graças à Deus.
Barlito (sobrinho por afinidade de seu ABDIAS) foi quem me incentivou para continuar no meu trabalho do pano da Costa. Ele frequenta Candomblé. Barlito achava que a minha arte devia ser divulgada. Ele queria tornar público e também provar para algumas pessoas incrédulas, que ainda havia, na Bahia, quem fizesse pano da Costa. O pessoal do Candomblé que duvidava de sua afirmação, era de um Candomblé mais africano e fechado. Foi assim que Barlito, para provar que ainda tinha quem fizesse o pano da Costa, me levou num programa da TV — Itapoã com CARLOS LACERDA, pianista, falar sobre a arte do pano da Costa.
Levei duas amostras vindas da Africa, não sei de que região, que PIERRE VERGER trouxe e me deu. Pano da Costa feito de fibras de Palha da Costa. Foi por intermédio de VICENTE SANTEIRO que conheci PIERRE VERGER. CARLOS LACERDA disse que aquela minha arte não podia morrer. Fez então uma carta importante para o amigo dele, doutor CLODOMIRO, acho que diretor da revista o CRUZEIRO, recomendando a minha pessoa. O escritório era bem na Piedade. Fomos eu e BARLITO aí no escritório, levando a carta de apresentação e as duas amostras africanas. Então este cidadão CLODOMIRO era um moço difícil de ser visto, exercia muitas atividades. Nunca soube mais nem do doutor CLODOMIRO, nem das duas amostras do pano da costa africano. Homem difícil de se achar! Nessa época (por volta de 1970 segundo informação de D. ELIETE à autora) ELIETE DE MAGALHÃES estava atrás de mim para encomendar panos da Costa para o Museu da Cidade que ia ser inaugurado; Ela foi informada, por confusão, da minha morte. Mas quem tinha morrido foi Pequeno da Muriçoca, que também fazia pano da Costa.” Seu ABDIAS não conheceu pessoalmente Pequeno da Muriçoca. Ficou sabendo de sua existência alguns anos antes, através de um jornalista que elaborava uma reportagem sobre o pano da Costa. Na reportagem o jornalista teria previsto o desaparecimento da fabricação do pano na Bahia por falta de continuadores. Na memória do seu ABDIAS a reportagem assim dizia:
”Os dois mestres tecelões não deixarão discípulos. Quem quiser pano da costa que mandasse buscar na Africa porque aqui na Bahia ia desaparecer por não ter mais quem aprendesse tal arte-.
“Pouco depois desta entrevista, Pequeno da Muriçoca, babalorixá desaparece, vítima de enfarte. Foi pra outro lado da vida.
Foi daí que fiz os panos da Costa para o Museu da Cidade. Oito panos para oito Orixás.
Só vim a sabor da importância do meu trabalho depois da morte do meu padrinho prá cá, por causa das divulgações, publicações, etc. Antes eu achava apenas bonita, uma arte como outra qualquer. Só mais tarde é que vim descobrir o seu valor real. Na minha ideia, no meu pensamento, fiquei sabendo que não era arte daqui, foi trazida para o Brasil, vinda de outro país, outra nação, outro continente, vindo para o Brasil. Uma arte primitiva, arte de séculos, já marcada, penetrada na terra pelos africanos.”
Outro fator que influenciou no gosto do seu ABDIAS pela arte da tecelagem foi a visita de uma comitiva de representantes de um certo país africano que ele não se lembra qual, e que esteve aqui na Bahia durante uns 15 dias. No último dia todos se trajaram nos moldes típicos, próprios da África. Muito bonito”.
“Quando fui morar sozinho, já estava com a idade avançada, com mais de 30 anos. Fui morar sozinho porque minha mãe já estava velhinha. Ela morou comigo na casa de meu padrinho pouco tempo, mais ou menos um mês. Depois, aluguei uma casa para ela na Ubarana, na Amaralina, e durante algum tempo, pagando a casa pra ela, ainda morei com meu padrinho. Mas resolvi sair porque não podia morar lá a vida toda.
Quando eu me casei, eu morava na rua do Tijolo (atual 28 de setembro), em frente a antiga Escola de Belas Artes. Me casei com a idade de 42 anos mais ou menos, com GERALICE DE ALMEIDA NOBRE. Do meu casamento nasceram treze filhos dos quais sete são vivos. Tenho quatro netos. Dois meninos e duas meninas.
Depois de casado fui morar na Baixa dos Sapateiros. Minha mãe foi morar comigo nesta época. Quando ainda estava na Baixa dos Sapateiros, comecei a construir minha casinha no Pau Miúdo – Rua Nova do Cruzeiro n. 35, onde moro até hoje. Minha mãe me acompanhou ainda alguns anos indo morar no Pau Miudo quando a casa ficou pronta. Dai, ela me fez um pedido, depois que eu me casei, pedido esse dizendo assim — meu filho, eu quero que você me arranje me internar no Abrigo D. Pedro II na Boa Viagem, porque você já está casado e é muita consumição pra você. Eu já estou velha e preciso de um lugar mais sossegado. Então eu disse pra ela – minha velha, esse pedido é um pouco difícil, mas eu vou jogar o barro na parede que é pra ver mais ou menos o que posso fazer. Então eu fui na CARLOS GOMES, num edifício onde trabalhava o Dr. PEDRO que era o diretor lá do asilo, me parece. Mas nunca consegui ver esse cidadão. Mas como tinha uma substituta, não me lembro o nome dessa senhora, ela me diz para eu ir sempre para ver se já tinha vaga. Sempre, sempre eu ia lá mas nunca tinha vaga. A vaga, segundo essa senhora, só se dava quando morria um.
E foi isso o que eu disse a minha mãe, e ela mesmo viu a dificuldade de se arranjar uma vaga. Então eu parti pra outro lado. Parti para o abrigo dos velhos de Brotas, acho que é Abrigo São Salvador. Eu falando com dona HENRIQUETA se ela podia me fazer esse favor de internar a minha velhinha nesse abrigo de Brotas, eu recebi um sim. Quando recebi o sim, eu então disse pra minha mãe — é minha velha, eu não consegui um mas consegui o outro. Lá é mais arejado, tem igreja, roça grande, um lugar muito bom. Ela durou ainda uns dois anos morando lá. Depois ela morreu. É uma pérola que quando a gente perde não acha mais. Foi uma mãe muito boa pra mim. Internei ela lá por causa do tear. Devo ao tear ter conseguido a vaga para o asilo de Brotas. Foi por intermédio de D. HENRIQUETA CATHARINO que consegui, em menos de dois meses, o internamento.
Dos seus filhos, apenas a caçula, LURDES, de 21 anos aprendeu a arte do pano da costa. Mestre ABDiAS tem esperanças de que através de LURDINHA sua arte não desapareça.
“Ela será a raiz que dará continuidade para a minha arte não deixando morrer essa arte tão bonita que é a do pano da Costa. A mais velha, JACIRA, tentou aprender, mas não teve paciência para continuar”
Todos os dias o velho ABDIAS trabalha no Instituto Feminino pela tarde e divide suas manhãs entre a Escola de Belas Artes, como modelo e a Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia, ministrando aulas no tear.
“O futuro do pano da costa vai ficar com minha filha, se ela também se interessar, tem isso também.
Mas, como a minha primeira filha, a mais velha, Jacira, estava aprendendo comigo o pano da costa, estava indo muito bem. Pela manhã até meio dia ela estava no Instituto Mauá na Avenida Sete e de tarde no Instituto Feminino. Estava tomando gosto, estendendo os fios, aprendendo a pedalar. Mas os tempos vão se passando, ela se queixando que estava doente. Então eu disse — minha filha você está doente, vai se tratar, depois você volta. Quando voltou achou que não tinha paciência. Nesta ocasião tinha um festival na África, e se ela aprendesse, eu dava ela pronta para este festival da Nigéria. Foi Gilberto Gil, Olga do Alaketo, Aninha do Gantois, etc. e eu deveria ir neste meio mas eu não fui, mas se minha filha aprendesse ela ia me representar no Pano-da-Costa.
Mas como surgiu a Lurdinha, a filha mais nova, e me lembrando da mais velha, estou com a pulga atrás da orelha, com medo que possa acontecer a mesma coisa com essa, a Lurdinha.
Foi no Jornal da Bahia que eu disse — é o artista só tem valor depois que ele morre. Depois de publicado isso que eu estou falando, o professor Vivaldo da Costa Lima, este cidadão mandou uma caravana lá no Instituto Feminino dizendo que precisava, como sem falta, falar comigo sobre umas aulas para serem dadas lá no Pelourinho, aulas de pano da Costa. Mas, ele só queria com um de meus filhos. Então disse — vou ver se aproveito minha filha, a Lurdinha que já tinha aprendido tecelagem na Escola Parque. Mas como ele disse que gostaria de aprender o pano-da-Costa não precisei nem falar.
Ela ficou animada e já sabe esticar o fio, já teceu uma faixa no tear moderno, mas que já foi vendida. Estava tão em esticado o fio que eu mesmo não acreditei. Mas ela ainda não está perita no acabamento da orelha, está muito grosseira ainda e também nas padronagens do pano da Costa. Ela sabe sobre as cores dos orixás, os panos que os orixás usam.
No Pelourinho tem umas monitoras que estão interessadas em aprender. Umas acham difícil, mas, na boca assim falando e fácil – vou aprender, vou aprender! Duas já se interessaram, uma bate na Pedalagem para traçar o pente e o liço igual a minha filha, mas a minha filha ja aprendeu mais; a outra aprendeu a estender os fios. No meio de 10 só duas se interessaram. Os meninos do Maciel parece, é como se diz, filho de peixe peixinho é, eles querem mais capoeira, samba, teatro. Mas pro lado de “arte” não querem saber nada. E por isso acho que não vão aprender muita coisa, principalmente o pano-da-costa que é uma arte que necessita muita calma, paciência e resignação. Mas como minha filha está comigo, como ela é muito disposta e trabalhadeira, acho que ela vai conseguir ensinar pelo menos a uma ou duas pessoas. Com minha filha, eu acredito que esta arte não vai morrer comigo.
O pano da costa verdadeiro, tecido no tear manual, que eu conheço, só foi feito por tecelões masculinos aqui na Bahia. Minha filha vai ser a primeira mulher; que eu saiba, que vai fazer continuar esta arte de tecelagem manual do pano de Alaká.”
Para a autora. a Articulação com os Terreiros de Candomblé e os Movimentos que recuperam as raízes e contribuições culturais negras. pode ser a solução de sobrevivência e continuidade da produção do Pano Ga Costa.
O alto custo unitário deste trabalho artesanal que dura três meses para sua confecção, ao mesmo tempo que dificulta a sua aquisição pelos seguidores usuais do Culto, aponta ainda para a compra por Casas ou líderes de Culto, ou instituições (blocos, afoxés, museus, etc). Concluímos que, deste modo, o Pano da Costa poderá sobreviver em sua integridade e significado, ultrapassando a fase atual, em que sua sobrevivência tem dependido das “faixas de moda” que as moças compram por beleza,
Esperamos que esse nosso trabalho seja uma pequena contribuição no sentido de preservar as nossas raízes e identidade cultural.[1]
[1] O texto foi transcrito com algumas atualizações e explicações da publicação CARVALHO, Vânia Bezerra de. Mestre Abdias: o último artesão do pano da costa. Salvador, 1982. 20 p.
Autores(as) do verbete:
Data de inclusão:
27/05/2019
D536
Dicionário Manuel Querino de arte na Bahia / Org. Luiz Alberto Ribeiro Freire, Maria Hermínia Oliveira Hernandez. – Salvador: EBA-UFBA, CAHL-UFRB, 2014.
Acesso através de http: www.dicionario.belasartes.ufba.br
ISBN 978-85-8292-018-3
1. Artes – dicionário. 2. Manuel Querino. I. Freire, Luiz Alberto Ribeiro. II. Hernandez, Maria Hermínia Olivera. III. Universidade Federal da Bahia. III. Título
CDU 7.046.3(038)
muito enriquecedora toda a entrevista.